domingo, 13 de dezembro de 2009

Texto para um domingo de sol: 'JAMAIS PERDER A DOÇURA'




"Um idoso na fila do Detran".


“O senhor aqui é idoso”, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal "senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.

O jornal tem recebido muitas cartas elogiando e outras criticando aquele departamento de tão má reputação. Afinal, melhorou ou não o serviço? Cheguei a pensar em sugerir à editoria de Cidade que mandasse fazer uma daquelas matérias em que o repórter desse o seu testemunho. Simularia tirar uma carteira e assim desfaria as dúvidas.
Agora, ali, no posto da Gávea, esperando a minha vez, eu me sentia fazendo as funções desse repórter, e tudo começava bem. A operação toda não demorou nem meia hora e eu já ia aplaudir o atendimento, quando, ao lado da boa notícia - aprovação no exame de vista - me deram uma má: teria que ir à Avenida Presidente Vargas para pegar a carteira.

Foi assim que acabei assistindo àquela confusão de que falei no início. Aliás, não só assisti como dela participei: o “idoso” que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos “enta”; dos 50, quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira idade". Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.

Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: “idoso é o senhor seu pai”. O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E o guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim?

Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: “esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!”. Mas que nada, nem um pio.

O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima - do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Isso é uma sacanagem comigo”, me disse, “eu não mereço”. Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: “Mas ninguém lhe dá isso”. Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran nem isso, nenhuma alma caridosa para me “dar” um pouco menos.

Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: “Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas”. Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: “o senhor não tem mais de 65 anos, não é idoso?”

- Não, sou gestante - tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí remungando: “não tenho mais, tenho só 65 anos”.

O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. “Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15”, já ouvi essa discussão. Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Aí, se não me falha a memória - e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade - me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo.

Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Francis, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou outro - de ano, meses ou dias - e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? “No Detran”, diz uma voz. Ah, sim. “E o atendimento?” Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas, mesmo sem entrar em fila, passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade."

 
 
Outras palavras...
 
 
Certamente os amigos que já passaram ou estão próximos dos "enta", como insinua Ventura, em algum momento já devem ter parado para pensar como será sua vida ao chegar na melhor idade, certo? Acho até que pensar sobre esse assunto é um dever de todos, visto que por falta de entendimento e sensibilidade, o idoso ainda tem ficado a margem da sociedade e mudar essa realidade é dever nosso também...
 
Contudo, ainda continuo com a opinião que as coisas não precisam de um peso maior do que os que elas já carregam... e as vezes nem carregam, basta saber conduzi-las com maturidade, inteligência e... BOM HUMOR!
 

É isso que o texto de hoje nos traz, uma reflexão leve e bem humorada sobre as mudanças e fase que atravessamos durante nossa passagem por esse planeta! A crônica de hoje é de 1996 e foi publicada pelo jornalista Zuenir Ventura no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, mas ainda soa muito atual, não?
 
 
 
Bem, eis o que tínhamos para este domingo de sol (no nordeste, pelo menos)! Espero que não entendam mal a imagem que ilustra o tópico (by internet, diga-se de passagem), a intenção foi só preparar para o texto, que apesar de engraçado, esconde em si uma bela reflexão!
 
Jr.





5 comentários:

lis disse...

Oi, Júnior
Ri muito e adorei o texto do Zuenir , muito bom.
Essa é a constatação mais triste da fase dos "enta",e a palavra idoso smpre cai mal, terceira idade entao, piora ,rsrs Nesses novos tempos entendemos que estamos indo pra lá quando também os amigos dos filhos te cumprimenta : Oi tia! foi um dos momentos que minha ficha começou a cair rsrsrs e isso já faz um tempinho rsrs e quase sempre queremos disfarçar o óbvio rsrs
Me diverti com a ida ao DETRAN , boa escolha sua.
Muitos abraços e uma semana boa , com sol.Aqui já chove , de novo ,mas está linda a tardinha que vai indo embora.
Até

Carol Sakurá disse...

Oi Junior!

Adoro a capacidade de sensibilidade de Zuenir.
Parabéns pela escolha!
Veio como um sorvete de maracujá nesta quente tarde de sol.

Abs!

Carol Sakurá

Dalva Nascimento disse...

Oi, Junior!

Esse texto é mesmo ótimo! Tratar de envelhecer com saúde (física e mental) é um assunto muito sério, mas como você bem disse: bom-humor é fundamental. É muito triste ver como as vezes as pessoas de mais idade são tratadas, com tão pouca atenção e sensibilidade. Mas cabe a cada um saber se valorizar e ocupar o seu espaço, seja em que etapa da vida se encontrar.

Um beijo e uma semana produtiva procê!

Unknown disse...

Pra mim esse já é um texto de 'segunda de sol', mas teve a mesma intensidade!

Adorei, viu? Muito legal, dei muita risada! A escrita é realmente um dom e nem todos dominam...

Quanto ao passar do tempo, a chegada gradativa da idade, concordo com você, melhor mesmo encarar a vida com bom humor...

Um beijo e boa semana.
Cris

Carol Sakurá disse...

Passando pra desejar uma linda semana!
Bjos!

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