quarta-feira, 29 de abril de 2009

Quarta da poesia: "Lembranças" de Manoel Carlos

"Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu, sozinho, menino entre mangueiras,
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais."

Com esses versos Drummond começa seu poema Infância, escrito na década de 20. Por que estou a me lembrar precisamente desses versos, em meio a tantos do poeta, que cultivo na memória e que são melhores – digo isso sem medo de errar – do que esses que agora lembro para vocês?

Eu conto: perdi há menos de um mês um velho amigo que me acompanhou da adolescência aos dias de hoje; ou, mais precisamente, até o dia 9 de janeiro, pois morreu dia 10. Há pouco mais de uma semana, foi a vez de um querido primo, primo em primeiro grau, como se dizia antigamente, ir embora sem aviso prévio, quero dizer, sem doença, assim como se lhe desse, de súbito, um cansaço da vida.

Com essas perdas bateu-me uma certa melancolia que me levou ao passado, mais precisamente à parte da minha família já desaparecida. E, entre as muitas lembranças que me tomaram, revi meu pai cruzando todos os cômodos da casa, apagando as luzes e comentando em voz baixa: "Pensam o quê? Que sou sócio da Light?". Conseqüentemente, revi também a mim e aos meus irmãos trocando um olhar tolerante, comentário sem palavras que queria dizer: "Papai está caducando!".

Quando estamos predispostos a lembrar, tudo nos faz lembrar. O calor dos últimos dias me devolveu a imagem da minha mãe, abanando-se com um leque e dizendo: "O calor está senegalesco". Era uma expressão habitual, que nos levava a pensar que o nome oficial do inferno era Senegal.

Minha mãe era meiga e simples como uma criança. Envaidecia-se de duas coisas na vida: de ser professora e de falar francês. Orgulhava-se também do avô médico, "formado na Bahia". Esse "formado na Bahia" era uma referência fortíssima que enriquecia qualquer currículo. Apesar de professora e de falar francês, andava descalça e almoçava e jantava quase sempre de pé, à beira do fogão. Quando estava conosco à mesa, era mais para nos ver comer e para nos lembrar da salada – "Um tomatinho e uma folha de alface, vai, não custa nada"– do que propriamente para ela mesma se alimentar. Era de uma incompetência quase total para os afazeres domésticos. Na cozinha, mesmo ao fritar um ovo, queimava os dedos e, não raro, o próprio ovo. Mas era mestre em sonhos e delírios, nos contando histórias vividas na sua remota infância, histórias que nunca soubemos se eram verdadeiras. Quando perguntávamos, dizia: "Que diferença faz? O que importa é a história ser boa e vocês se divertirem com ela!".

Tenho uma foto diante de mim: eu e minhas duas irmãs, crianças ainda, apoiados no carro novo do nosso pai, um Oldsmobile 1940. Olho para as sandálias nos meus pés de menino de 7 anos e me lembro, me lembro como se fosse hoje, de que chorei para não colocar aquelas sandálias por causa do barbante que meu pai usara à guisa do cadarço não encontrado na hora da foto. Pego uma lupa e passeio por todo o retrato e me parece ainda ver, nos meus olhos de criança, as lágrimas que então derramei. Será verdade? Vejo mesmo essas lágrimas ali cristalizadas há mais de sessenta anos? Que importa? O que vale é que me comovi com essa doce lembrança e aí sim, aí sim chorei de verdade.

Vivo cercado dos meus pais, tios e tias, primos e amigos, mulher e filho mortos, todos eles misturados aos vivos numa convivência pacífica, olhando para mim dos seus retratos.

E, como a vida é um ato de repetição, hoje insisto – igualzinho a minha mãe – para que meus filhos comam pelo menos um tomatinho e uma folha de alface às refeições, e passeio pela casa, apagando todas as luzes inutilmente acesas, como meu velho fazia. Junto ao fogão, vejo minha mãe olhando para mim e aprovando, com um gesto suave de cabeça, minha insistência com a salada. E depois, mais tarde, quando vou para a cama, por cada cômodo que passo e escureço, juro que vejo meu pai sorrindo para mim, carinhosamente; e posso ler em seus lábios mudos o que ele me diz: "O que essa criançada está pensando? Afinal, você não é sócio da Light!".

"Só descobrimos o que lembramos", escreveu o italiano Cesare Pavese. E relembrar, conclui ele, é ver pela primeira vez."
Crônica publicada na VEJA RIO, no dia 08/05/05 e no livro "A arte de reviver", Ed. Ediouro, pág. 165.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que bonito e interessante esse texto Junior. Tava com saudades de vir aqui no blog.
beijo grande e otima semana
Dinha

NANDITA CAYMMI disse...

êta.. hj lhe confesso que nao li o texto todo... mas releve.. é pressa. Mas nao poderia dxar de passar aki para lhe deixar um beijão!!!!! Depois volto e leio tudim.
bjos enorme!

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